Os filmes deste ano revelam que estamos mais doentes e mais lúcidos, e talvez mais humanos
Eu tenho uma terapia preferida que se chama cinema, aliás, que se chama ir ao cinema. Em véspera de Óscares gosto de percorrer o mais que posso os filmes nomeados. Acho que foi um bom ano.
Gosto de ir naquelas horas em que quase ninguém vai. Gosto de almoçar ou lanchar cinema, às vezes é um lanche a meio da tarde, outras é mais um jantar cedo. Depende sempre de como organizo o meu trabalho, mas faço por intercalar as minhas obrigações com as devoções; e no topo das preferidas estão os filmes.
À beira dos Óscares gosto sempre de ver os nomeados e a temporada 2022/2023 não está a ser nada má. Tenho visto filmes que conseguem surpreender-me, o que nem sempre acontece numa 7.ª arte que já leva anos e anos a cumprir, replicar e declinar fórmulas de sucesso. Acredito que isso muito se deve ao facto de a Humanidade estar doente, mas também mais lúcida.
A minha amiga MJ, que é a pessoa que eu conheço que mais pensa e reflete sobre o mundo, tem-me dito que sente que as pessoas estão doentes. “As pessoas andam a passar tão mal. Não é que antes andassem a passar bem, mas...É uma sensação de tragédia eminente. Sei lá.” Não sabemos. Mas sente-se. Não sentem?
A pandemia fez-nos isso, tornou-nos lúcidos durante o tempo em que vimos a vida por uma máscara, e andámos a trocar arco-íris, e depois voltou tudo ao que era. Mas será que voltou mesmo? Eu creio que a pandemia mudou-nos mesmo. Não mudámos para melhor, como achávamos na altura dos confinamentos, mas ficámos cientes de que apesar de termos voltado a ser os mesmos egoístas e a enfiarmos a cabeça na areia é possível sermos melhores. Ficámos com uma espécie de reserva mental.
Desde que acabou a pandemia, o mundo anda em dissonância, como se nos tivessem acordado de um sonho mau, onde percebemos o que tínhamos de bom. Parece que temos de estar mal para ficarmos melhores, e “só” foi preciso uma pandemia em que estávamos todos oficialmente mal, ao mesmo tempo e em todo o lado. Quando acabou, voltámos a ver os males do mundo como os males dos outros que estão lá longe e só nos beliscam aqui e ali pela tv e pelo ecrã do telemóvel. Mas não estamos iguais e acho que o cinema está a refletir isso, a mostrar esta nossa podre e compassiva condição humana.
Eis alguns dos filmes mais marcantes que vi entre o ano passado e este ano, e que integram a lista das nomeações do Óscares, sem qualquer ordem especial.
Baleia (The Whale)
Começo pelo último que vi. The Whale, realizado por Darren Aronofsky, que não é propriamente conhecido pelos seus filmes alegres e levezinhos, é escrito por Samuel D. Hunter, autor da peça do mesmo nome. Prefiro o cinema ao teatro, sem reservas, e gosto do que o cinema pode fazer com o teatro. Não é por acaso que alguns do meus filmes preferidos são peças de teatro adaptadas ao cinema. A Baleia não entrou para o meu top, mas a representaçao de Brendan Fraser sim. Se hoje lhe entregarem o Óscar, não me importo nada. O filme tem sido acusado de promover a gordofobia e criticado por não ter sido escolhido um ator obeso… Tenho muito pouca paciência para estas críticas, confesso. O que eu mais gostei do filme é que não tem qualquer ponto de vista moral, não há nenhuma lição final tendenciosa, as personagens são que são e são muito, e Charlie, magnificamente interpretado por Brendan Fraser, é o que decidiu ser e morre como decidiu morrer. Se alguma lição há no filme é que as pessoas são livres de apodrecer e desistir, e a culpa não é de ninguém, nem niguém pode ser salvo se não quiser.
O triângulo da tristeza
O triângulo da tristeza, de Ruben Östlund, cai-nos tão mal como os enjoos que a tripulação sofre a bordo na primeira metade do filme. A chegada de uma parte das personagens sobreviventes do naufrágio a uma ilha descamba num cada um por si e tudo ao ódio e nenhuma fé em ninguém. Mete o dedo na ferida de como gostamos de ver os famosos e ricos a sofrerem. Tivesse o filme sido todo no barco e teria sido mais divertido, depois chegavam a bom porto e cada um ia à sua vida e nós também. Assim, saímos mal dispostos com o final. O filme ficará para sempre lembrado pela morte súbita da atriz sul-africana Charlbi Dean, em agosto passado, apenas com 32 anos. A sua prestação no filme indicava uma carreira promissora, e não tardaram os comentários nas redes sociais a deitar as culpas na vacina contra Covid. É difícil quebrar estes triângulos…
Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo
Foi a s-u-r-p-r-e-s-a do ano! Entrei sem saber ao que ia, não tinha lido nada sobre o filme, ninguém me havia falado dele, apenas era a sessão que estava prestes a começar e fui. Saí da sala absolutamente rendida e cheia de bons sentimentos no coração. Há quanto tempo não via um filme que me encantasse assim? Tudo em todo o lado ao mesmo tempo, de Daniel Scheinert e Daniel Kwané, conhecidos como Daniels, é uma excelente alucinação sobre o multiverso e sobre tudo aquilo que podemos ser numa só vida. Apesar de envolver muitas lutas de artes marciais, oferece-nos uma mensagem de gentileza e bondade, com os outros e connosco. Na mouche. Se tivesse de decidir o Óscar para o melhor filme do ano, seria este. E o elenco é maravilhoso. Tenho soltado umas lagrimitas a ver os discursos de aceitação dos vários prémios já ganhos.
Para Leslie
“É um filme muito americano, como eu gosto. Aquela América feinha, mas com o seu encanto e redenção”, foi assim que descrevi Para Leslie em mensagem para a MJ. É um filme de produção independente, com realização de Michael Morris e argumento de Ryan Binaco. Valeu a Andrea Riseborough a primeira nomeação para Óscar de Melhor Atriz, e é merecida, apesar da polémica em que esteve envolvida. Se calhar, se não fosse a nomeação nem teríamos visto o filme por cá nos cinemas, e ainda bem que vimos, porque vale a pena. Leslie, mãe solteira alcoólica a viver miseravelmente entre a rua e motéis manhosos, depois de ter perdido para o vício um prémio jeitoso da lotaria, acaba da forma que o sonho americano gosta - reabilitada e apaixonada -, mas não vai lá sem o retrato puro, nada cor-de-rosa e sem filtros do que é ter uma doença de adição. O que de melhor o filme tem, além da grande prestação da até agora pouco protagonista Andrea, é que nos mostra como ajudarmos o outro a salvar-se é dar-lhe espaço e apoio para confrontar-se, dar-lhe um espelho limpo sem riscos de preconceito, para que se veja e queira sozinho encontrar o caminho. Leslie consegue salvar-se com a ajuda de duas pessoas boas, e nós ficamos felizes.
Tár
Fui ver este filme com a minha amiga Cláudia e no fim ela disse: “Demorei tempo a não gostar dela”. É mesmo isso, demoramos a não gostar da maestrina génio Lydia Tár, interpetada pela sempre inexcedível Cate Blanchet. E é por isso que eu gostei. Escrito e dirigido por Todd Field, Tár reflete sobre a ambiguidade do ser humano e de como é redutor vermos as situações a preto e branco. Gostei da forma justa e nada tendenciosa como aborda a cultura do cancelamento. É difícil tomar partidos aqui, porque em Tár todos se aproximam da vilã para ganhar poder, bebendo do poder de que ela abusa. Vivo bem com as abordagems que contrariam e destoam da atual tendência binária e inflexível nas redes sociais. Mas não se preocupem, a vilã não sai por cima. É um filme que incomoda, porque às tantas não sabemos o que pensar, o que nos leva a pensar mais depois.
Viver
Viver, protagonizado por Bill Nighy, que vai muito, muito bem, e realizado por Oliver Hermanus, é baseado no filme Ikiru de Akira Kurosawa e o argumento adaptado, e que concorre ao Óscar nessa categoria, é escrito por Kazuo Ishiguro, apenas o Prémio Nobel da Literatura em 2017. Tudo para dar certo, portanto, e dá. Bill Nighy tem uma atuação comovente e inspiradora, e também lhe ficava bem a estatueta. A história passa-se na Londres pós 2.ª Guerra Mundial, a renascer dos escombros, e acaba com uma mensagem de otimismo. Nunca é tarde (nunca, nunca, nunca) para fazer as coisas bem e deixar a nossa marca no mundo. Não precisamos de fazer grandes obras, basta fazer o melhor que podemos com o que está ao nosso alcance, e temos mais poder do que julgamos memso que estejamos a uma secretária a tratar de burocracia. É um cliché tão cliché, mas as melhores histórias são assim - fazer dos clichés uma novidade constante. Lembram-se do carpe diem de outro filme?
Os espíritos de Inisherin
O filme escrito e realizado por Martin McDonagh, que já nos tinha esmagado com Três cartazes à beira da estrada, consegue verdadeiramente estristecer-nos. Os espíritos de Inisherin, do género comédia dramática, é o filme que este ano me fez sair mais triste da sala, porque daqui não resulta nenhuma redenção, vingança, promessa de alegria futura, aceitação, ou reconciliação, apenas uma profunda tristreza e solidão dos personagens. Colin Farrell e Brendan Gleeson protagonizam de forma irrepreensível a separação unilateral de dois amigos, quase litigiosa, com origem e repercussões na saúde mental de ambos. Quando os outros se vão, ou os deixamos, por termos valores e formas de estar diferentes, ficamos amargurados, imaginem numa ilha na costa da Irlanda, nos anos 20, onde há poucas ou nenhumas escolhas. Os espíritos de Inisherin é um filme sobre o fim do nosso mundo; Pádraic, interpretado por Colin Farrell, não está preocupado com a Guerra Civil da Irlanda que acontece lá no continente, ele está preocupado com o fim do seu pequeno mundo que acaba diariamente com umas ‘pints’ no pub a conversar com o seu amigo. O elenco é todo muito bom, destaque também para Barry Keoghan (o tonto da terra) e Kerry Condon (a irmã de Pádraic).
The Fabelmans
Sou grande fã de Steven Spielberg. O filme The Fabelmans é muito bonito. A história é muito bem contada. Spielberg faz filmes bonitos e sabe contar histórias como ninguém. Contar a nossa história, vermo-nos a nós e à nossa família de fora, como se um fantasma do passado fôssemos, é um ato de generosidade e coragem. O mundo precisava deste filme, porque gostamos de conhecer os nossos heróis. Obrigada Spielberg, por mais um - o teu.
Ice Merchants
É com a curta-metragem de animação Ice Merchants, de João Gonzalez (realização) e Bruno Caetano (produção), que Portugal se estreia nas nomeações para os Óscares. Não me espanta nada, há muito talento e futuro para uma indústria nacional nesses dois segmentos. Já ganhou a categoria Melhor Curta Metragem nos prémios Annie, os mais importantes do cinema de animação nos Estados Unidos, e estamos todos a sonhar um bocadinho e achar que lá nos EUA estão todos a torcer pelo filme. Se ainda não viram, por favor vejam, e vejam se ainda apanham no grande ecrã, faz diferança. São 14 minutos de pura arte e talento, e garanto-vos que não sairão emocionalmente ilesos. É muito bonito. Com ou sem o Óscar, já ganhou.
…
Custa-me ainda não ter visto (e eu queria era vê-lo no grande ecrã) o Top Gun:Maverick, o filme que na minha adolescência me levantou da cadeira para bater palmas (o outro foi o Regresso ao Futuro). Ver a sequela na corrida ao Óscar de Melhor Filme do Ano, além de Melhor Argumento Adaptado e Melhor Canção Original (aquém, contudo, de Take my Breath Away…), é uma revenge da nossa juventude.
O cinema é a vitória sobre a mortalidade, não é?