Andamos todos a ler e a ouvir falar sobre o futuro do trabalho. Se é de casa, se é remote, se é presencial, se é híbrido, se vamos levar as crianças para o pé da nossa secretária, adaptando o que fez esta biblioteca em Fairfield, na Virginia (EUA) ; se vamos todos abraçar o coworking; se vamos ser nómadas digitais; se vamos trabalhar e viver no mesmo sítio com outros viajantes de laptop às costas adoptando o co-living; se vamos ser normais e fazer o horário laboral normal de escritório, cumprindo o que a maioria das empresas (ainda) exige.
Nao sei o que vai ser, não faço futurologia. A única certeza que existe é que todas as pessoas, não só as empresas, querem coisas diferentes. E podem querer coisas diferentes em alturas diferentes da vida. As organizações têm de estar preparadas para essas mutações e intermitências se quiserem sobreviver e prosperar, atraindo e tirando o maior partido do talento disponível no mercado.
Tem-se escrito que as pessoas em geral não querem estar sós, sentem falta do convívio humano, até houve quem inventasse um website para podermos sentir em casa o barulho de fundo do escritório e dos nossos estimados colegas.
Quando a minha amiga MJ me enviou isto eu ri-me, porque a ideia tem piada e porque na realidade eu gosto é de não ter de ouvir os barulhos do escritório e prefiro estar com a televisão ligada no canal 24Kitchen. Relaxa-me e não me distrai.
Eu, tal como muitos, gosto de estar sozinha em casa a trabalhar. Também gosto de o ir fazer para a esplanada, para o bar do hotel, para o café, para o cowork. E também gosto de conviver e trocar ideias com pessoas de diferentes origens e saberes, de desafiar os colegas para almoçar ou beber um copo a seguir ao trabalho.
Ser uma pessoa que gosta de teletrabalho e de trabalho remoto (a diferença existe, apesar de os dois conceitos serem usados muitas vezes de forma indiferenciada) não significa que não goste de estar com outros e de trabalhar de forma colaborativa. Acima de tudo do que eu gosto é de liberdade, e creio que esse é o valor maior por que muitos anseiam.
A Covid veio acentuar este desejo, claro. Ao sentimento de prisão por estarmos confinados, seguiu-se o desejo de nos libertarmos de tudo o que (re)descobrimos não gostar de fazer.
Recentemente fui bastante impactada pela capa da The New York Times Magazine.
O artigo que a suporta reflete sobre as consequências nefastas que a pandemia teve na vida laboral e na forma como as pessoas começaram a percecionar o seu emprego. As comparações entre funções mais necessárias e mais dispensáveis que gerou, e a não-tão-suave-assim guerra civil que promoveu na sociedade, colocando trabalhadores contra trabalhadores, porque inevitavelmente a pandemia trouxe à tona as desigualdades sociais e de género - nem todos podem levar para casa o trabalho, nem todos se podem dar ao luxo de não andar de transporte público, nem todos têm ajuda para cuidar das crianças, nem todos podem encomendar comida e outros bens, nem todos têm casas grandes e com escritórios, nem todas as mulheres têm companheiros com quem dividem as tarefas, nem todos...
“The act of working has been stripped bare. You don’t have little outfits to put on, and lunches to go to, and coffee breaks to linger over and clients to schmooze. The office is where it shouldn’t be — at home, in our intimate spaces — and all that’s left now is the job itself, naked and alone. And a lot of people don’t like what they see”, reflete a autora do artigo.
Quando retiramos toda a parte social e ritualista do emprego, o que sobra? O trabalho e só o trabalho. Vemos melhor a inutilidade de alguns processos, a inexistência de um claro propósito, a eventual desorganização agora impossível disfarçar, a falta de ferramentas para trabalhar de forma remota... Quando muitas pessoas perceberam a frio e sem filtros aquilo em que realmente investem grande parte da sua vida, sofreram um choque.
Nos EUA fala-se em 25 milhões de trabalhadores que se despediram encorpando o fenómeno a que se chamou The Great Resignation. Em Portugal nunca temos a escala para estes movimentos, e não conheço nenhuma estatística que revele o que por cá se passou, mas empiricamente falando são muitos os parabéns que dei a amigos e conhecidos pela mudança de trabalho neste início de 2022. Todos os anos assim acontece, este ano, contudo, parecem-me muitos mais os Godpseed! que continuo a desejar no Linkedin.
Mais a fundo nas minhas relações, nunca como no último ano ouvi tanta gente a falar de reforma antecipada, de mudar de vida, de cansaço extremo, de querer mudar a forma como trabalha, da perda de entusiasmo, da procura de um propósito, de já não querer viver em função da carreira, de direccionar a ambição para outros campos da vida, a “vida é curta”, o “trabalho não é tudo”. Tenho amigos com burnout, outros à sua beira. Antes da pandemia, desde 2018/19, já vinha sentindo essa mudança, várias pessoas que conheço mudaram radicalmente de vida, mas 2021 marcou o ponto de não retorno para muita gente.
Não é que as pessoas não queiram trabalhar, como provocatoriamente a capa da NYT Magazine coloca no post-it, as pessoas já não querem é trabalhar da mesma maneira.
E estão ainda a descobrir como.
Essa incerteza, e a aceitação dessa incerteza, baseada em valores de que já não abdicamos – liberdade, saúde mental, família, amigos, justa recompensa salarial, propósito, impacto positivo na sociedade – é o que irá definir o futuro do trabalho; uma permanente busca e adaptação não só ao que o mercado exige, mas ao que queremos que o mercado passe a exigir. Já não são só as pessoas que precisam das organizações para trabalhar, são as organizações que precisam das pessoas. Percebendo isso, perdemos o medo de mudar.
A resposta passa pelo valor da comunidade, por criamos redes de apoio, encontrar a nossa tribo, colaborar, estar com outros e podermos estar sozinhos sem nos sentirmos sós.
Há algo de belo neste movimento global coletivo que em Portugal vai demorar mais tempo a consolidar-se: quando alguns perdem o medo de mudar os outros vão ganhando coragem, percebendo que o emprego ao contrário de tantas outras coisas no mundo é das poucas coisas que pode estar ao alcance de cada um mudar.
É mais fácil falar do que fazer, bem sei, mas a pandemia, no meio do caos que lançou, serviu para alguns pensarem “quando tudo se perde, perde-se o medo”.
Em muitos sítios do planeta isso está longe de acontecer. Quando se trabalha por uma malga de arroz não se discute satisfação laboral. Somos, apesar de tudo, da metade privilegiada do mundo. É por isso importante que as revoluções laborais que desejamos também passem por trazer a esses lugares remotos, onde muitos de nós até vão ser nómadas digitais, mudanças para as suas populações.
O futuro do trabalho não sabemos qual vai ser, mas o futuro do planeta e das sociedades que o habitam vai depender muito da forma como o formos desenhando.