O casal no Intercidades
Envelhecer é dar lugar e tempo para não saber, nem importar, se é certo ou errado.
No Intercidades, hoje, um casal idoso discutia amigavelmente se a estação onde havíamos parado era Setúbal ou Santarém. Apesar de estarmos na linha do Norte, e o comboio ter como destino final a Guarda, a senhora jurava que estávamos na capital do Sado.
Terminou o debate (cujo o tom mais parecia o do conclave para eleger o novo papa, imagino eu), com a senhora a admitir “Ah, tens razão, é Santarém é, mas parece Setúbal, por isso não estou errada”.
Ri-me em silêncio, com a máscara a cobrir a minha indiscrição.
O senhor não retorquiu, permaneceu em silêncio durante um bocado e depois perguntou-lhe se ela queria água, um bolinho, alguma coisa do bar.
Não faço ideia qual a história destas duas pessoas. Deverão estar na casa dos 70, e facilmente deduzo que estão casadas há mais de 40 anos, com uma história de altos e baixos, que veio desaguar numa relação em que na verdade, a pelo menos um deles, já não importa muito quem está certo ou errado. Imagino também - é sobretudo um desejo -, que vão alternando na cedência à opinião do outro, mesmo que seja disparatada. Dias terão havido em que ele disse que aquele ator era alguém que até já morreu ou que quem venceu as eleições em 1986 foi um polítco que na altura ainda devia andar na escola primária, e tudo estará bem. Ela vai oferecer-lhe um chá e perguntar-lhe se quer que lhe aqueça o pijama.
Ou se calhar embirram todos os dias e odeiam-se de morte, e apenas fizeram alguma cerimónia por estarem numa carruagem de comboio bastante composta.
Os casais podem evoluir para tanta coisa, inclusive para deixarem de o ser. Acredito que os mais felizes evoluem para uma paz que não dignifica a anulação mútua ou a falta de interesse em debater ideias, antes concede a ambos o espaço para serem, dizerem, sentirem, sem pressa e sem constrangimento, sem a censura que a vida agitada nos impõe na senda de tudo saber e de saber quem está certo.
Envelhecer é dar lugar e tempo para não saber, nem importar, se é certo ou errado.