I love you
Morreu ontem o Andy Fletcher dos Depeche Mode, uma das pessoas que tornou possível eu ter uma banda sonora oficial da minha vida. É por ele este texto.
I love you foi a primeira e única coisa que consegui dizer ao Martin Gore quando o cumprimentei nos bastidores do Nos Alive em 2013. Depois fiquei muda e meio aparvalhada, porque estava a conhecer a minha banda preferida de todos os tempos – os Depeche Mode.
Tenho várias bandas que adoro, os Depeche Mode são a resposta aquela pergunta que a minha amiga Gabi gosta de colocar no âmbito da rubrica “situação limite”: Se só pudesses ouvir (comer, vestir...) uma banda (comida, cor...) até ao fim da vida qual seria?
Não há grandes explicações. Somos aquilo de que gostamos e o que somos nem sempre se explica. A primeira canção que ouvi deles foi Just Can’t Get Enough, foi também a primeira que dancei mais tarde, numa daquelas matinés da adolescência, e por acaso nem é uma das minhas favoritas. Vieram sucessivamente muitas mais. Tantas. Chorei quando escutei A Question of Lust, achei que seria difícil superar Shake the Disease e Never Let Me Down Again, Strange Love reconciliou-me com as incertezas da vida, Walking In My Shoes lembrou-me a importância da empatia e da compaixão, e elevei ao altar o álbum Violator (1989), que se não integrar aquelas listas-de-melhores-discos-de-sempre então não valerão a pena as listas-de-melhores-discos-de-sempre. Cada canção do álbum podia ser um single. Por favor oiçam, se mais nada puderem ouvir da banda, oiçam o álbum Violator.
Ao longo dos anos foram integrando outras referências - I Feel You, do álbum Songs of Faith and Devotion (1993), só para nomear outra das minhas favoritas, traz um som mais sujo e mais pesado; e Heaven (2013) é uma “simples” balada com sonoridade electric-blues -, e eu fui também percebendo a profundidade das suas criações.
O som pop e os sintetizadores harmoniosos, que são a fundação da banda, são geralmente considerados coisas de música levezinha e superficial, mas os Depeche Mode carregam de mensagem a tempo do mundo que vivemos, de espiritualidade, anjos e demónios as suas canções. Como católica e rapariga de boas famílias, esse lado negro e profundo, que alguns consideram heresia, sempre me atraiu. Essa tecla batida no cristianismo, com referências e provocações estéticas constantes nos seus videoclips, desde os cenários ao símbolos, é glorificada em Personal Jesus; logo aquela que o Johnny Cash – que a tomou como um gospel - haveria de escolher para si. Sim, adivinharam, o Johnny Cash é o intérprete que eu escolheria na rubrica “situação limite”. Nada é por acaso.
É difícil escolher, é quase sacrilégio estar a nomear as melhores canções dos Depeche Mode, porque todas elas tocam alguma parte do meu batimento cardíaco e da minha alma que tão depressa vive em modo cor-de-rosa-a vida-é-bela, como descai para o lado das grandes interrogações filosóficas e se veste de asas do desejo por arrancar a razão das coisas nas profundezas em que muitas pessoas não querem entrar. Depeche Mode combina isso que eu sou - uma rapariga pop dada ao lado gótico e com um fascínio por country e espiritualidade, que não nega uma boa guitarra eléctrica ao mesmo tempo que delira com a electrónica dos sintetizadores.
Infelizmente Portugal esteve durante muitos anos fora do circuito das tours das bandas. A minha geração viveu uma adolescência e início de juventude adulta sem a gloriosa experiência de ir a um concerto ser tão normal como ir ao cinema. Só em 2009 consegui finalmente vê-los ao vivo, no Pavilhão Atlântico, e julguei que o coração me saltava do peito. Lembro-me que fui ao cabeleireiro antes do concerto; agora dá-me contade de rir, na ocasião pareceu-me o mais acertado (há fotos no Facebook). Antes, em 2006, adoeci e não pude comparecer, e na sua primeira vez no país, em 1993, estava eu noutro hemisfério.
Em 2013 tive a honra de ir aos camarins após o concerto que deram no festival Nos Alive, graças ao meu bom amigo colombiano Peter Salmang que nos seus tempos de músico tocou na primeira parte de um concerto que deram na Colômbia. Foi um momento bonito, de que não me canso de falar sempre que posso, sem fotos mas, mais importante do que isso, para sempre gravado no meu coração.
Morreu ontem o Andy Fletcher. Os seus companheiros anunciaram em choque nas redes oficiais da banda. É por ele este texto.
Morreu a “coluna vertebral” da banda, o “mestre da melodia pop”, “mediador”, há muitas descrições escritas por aí. Em 2013 disse dele mesmo, numa entrevista, que era “the tall guy in the background, without whom this international corporation called Depeche Mode would never work”.
Para mim morreu uma das pessoas que tornou possível eu ter uma banda sonora oficial da minha vida. E isso é dizer muito. Obrigada Fletch.
Hoje, no intervalo de reuniões e telefonemas, tenho estado a ouvi-los e a dançar. É a melhor homenagem que podemos fazer às bandas e aos músicos da nossa vida.
Depeche Mode, I love you.
P.S. - A RTP 2 exibe este sábado, 28 de maio, às 22h, o filme-concerto “Depeche Mode – Espíritos na Floresta”, documentário dirigido por Anton Corbijn. O programa foi anunciado antes da morte de Andrew Flectcher. Uma sincronicidade que podemos aproveitar para evocar e homenagear a passagem do músico por esta dimensão terrena.
Excelente texto. Não sendo a minha banda mais que tudo tenho enorme respeito pelos Depeche Mode e sem o Violator seríamos todos mais pobres de espírito.