A Web Summit vale a pena, se a alma não é pequena
Quando a Web Summit sair de Lisboa vão existir cidades a fazer fila para acolher o evento.
Este ano, a Web Summit deu-me uma valente virose. De tal forma, que não só adiei este texto, como fiquei em casa de molho em vez de ir ao Porto apoiar o Benefício, como é costume nesta altura do ano.
Mas valeu a pena. Desde 2016 que vale a pena, e é sempre com profunda emoção que vivo estes dias de encontros, aprendizagens e inspirações.
Para quem não vai e só vê o que passa na TV, acredito que pareça apenas uma feira de nerds, um palco cheio de luzes com pessoas a falar estrangeiro em bull-shitês e um robô ou umas celebridades pelo meio.
É tão mais do que que isso. A maioria do que acontece não sobe às grelhas televisivas e aos alinhamentos editoriais da imprensa. Naturalmente, é impossível cobrir tudo.
Para começar, além do Altice Arena (o espaço onde entro menos), há 16 palcos distribuídos por cinco pavilhões, com mais de 800 oradores (38% mulheres, o número tem vindo a subir), a partilhar experiências e conhecimento em diversas áreas - desde o desporto, à deep tech, saúde, educação, entretenimento, música, ambiente, moda, computação quântica, futuro do trabalho, futuro da mbilidade, robótica, investimento… e até literatura.
Das minhas palestras preferidas, duas situaram-se no palco da Book Summit. Sim, um palco sobre livros, em papel, e do papel para o cinema, e sobre a arte de escrever e como a mesma será influenciada pela AI do chat GPT, por exemplo. Uma com o realizador de cinema e escritor Neil Jordan, outra do escritor John Connolly que assumiu logo que era a sua primeira apresentação com um power point. Achei ambos incríveis. Provavelmente os menos tech de toda a conferência, nem por isso menos lúcidos ou enfiados com a cabeça na areia a deixar passar as caravanas da tecnologia.
Além das palestras e painéis de speakers, há masterclasses, há competição de pitchs das startups (Portugal já teve uma startup vencedora, em 2014, a Codacy, quando o evento ainda era em Dublin, e que foi um pouco responsável também para chamar a atenção da organização para Lisboa), há encontros entre startups e investidores, há sessões de mentoria, há roundtables sobre temas complexos em que qualquer um pode inscrever-se e debater ideias com grandes corporate e gurus da inovação, há centenas de startups com quem podemos falar e cujos produtos podem ser a next big thing.
Há ainda milhares de pessoas que se encontram e continuam a falar para além do evento, e que poderão colaborar e ajudar-se mutuamente, ou simplesmente criar laços de amizade, algo que nenhuma AI ainda igualou.
Para quem vai ao evento, pouco importa se o CEO mudou e se algumas empresas (tipo Siemens) ou atores fizeram boicote; as pessoas vão lá para conectar-se, inspirar-se e fazer business.
A ausência de alguns investidores de topo, como a Sequoia, e de nomes dominantes do ecossistema mundial de startups e incubadoras, como o YCombinator, ensombraram de alguma forma o evento. Paddy deu um passo maior do que a sua influência, numa área em que Israel é um player avançado. E isto é um facto.
Mas não assombraram.
Os números desta edição, contudo, apesar da polémica que a envolveu e das ausências publicitadas (e nem todas clarificadas), não deixam margem para dúvidas que o evento não morreu:
70.236 participantes, 43% dos quais mulheres (os bilhetes Women in Tech com generoso desconto têm ajudado a equilibrar a balança, obrigada!), de 153 países, 321 parceiros (stands) e 2.608 startups (número record).
O que notei de mais significativo este ano?
Aquilo que para mim foi o mais relevante, e ilustra bem a importância que o evento tem para Portugal, foi o maior número de stands de países. Nunca como este ano tinha visto tantos países a investirem no evento, a venderem as suas startups, o seu talento, as suas condições ideais para investidores e empreendedores. Todos com um único foco - atrair investimento e talento para as suas regiões.
Muitos deles, acredito, no dia em que a Web Summit sair de Lisboa, vão fazer fila para terem lá a conferência. Porquê? Devem considerar que o evento traz um retorno incalculável.
Alemanha, Áustria, Brasil, Brasil (Rio de Janeiro), Bulgária, Estónia, Letónia, Espanha (Andaluzia), Espanha (Catalunha), Itália, Grã Bretanha, Reino Unido (UK Department of Business and Trade), Qatar, Dubai, Malta, Holanda, Porto Rico, Roménia, Ucrânia, Lituânia, Tunísia, Canadá (Toronto), Canadá (Montréal), Japão (Tóquio), Polónia, França (Paris), França (La French Tech), Chile, Georgia, Hong Kong, Singapura, Turquia, Cabo Verde… Não anotei todos.
Da parte de Portugal, além do habitual stand oficial que reúne o governo local (CML, Startup Lisboa, Unicorn Factory, Hub Criativo do Beato, etc.) e o nacional (Startup Portugal), destaque para a presença significativa do Porto (uau! espetacular stand), do notável Instituto Pedro Nunes (Coimbra) e da Startup Fundão e da Invest in Azores - duas regiões que já perceberam há algum tempo a importância da atração de empresas tech, quer estrangeiras, quer nacionais, para o desenvolvimento local.
A Alemanha foi um “escândalo”, o país que mais investiu, com o maior stand de todos, quase uma mini-summit dentro da Summit, tendo levado muitas startups consigo. Como dizia num cartaz: “Germany works”. Ri-me ainda com um folheto, em que a delegação alemã resolveu anexar Espanha a Portugal (não o contrário), e a capital é Lisboa. Novas narrativas.
Este ano, o tema transversal foi a Inteligência Artificial. Quase todas os painéis e intervenções perpassaram por esta maré que ninguém, nem os mais céticos e anti-tech, vai conseguir travar, tal como não conseguimos travar as ondas do mar. A questão é: como vamos viver com ela? Como vamos surfar ou mergulhar nessas ondas? Podemos achar que é coisa de filmes, não é, e acho que muitos setores, nomeadamente a educação, a comunicação e criatividade, devem rapidamente preparar-se para os desafios e estão a refletir algumassincronia. Como confessou Sairah Ashman, global CEO da renomada agência de branding, Wolff Olins, existe um perigo grande de a AI acelerar demais a produtividade, de existir para sermos cada vez mais rápidos. Ora, a criatividade exige tempo. Não somos (não queremos ser) meras unidades de produção.
Porque é que eu vou à Web Summit?
Vou por razões profissionais.
Gosto de assistir às talks, de descobrir novas perspetivas, conhecer novos produtos. Não vou à toa, à espera de ver engenhocas inventivas e celebridades. É uma conferência de trabalho, não é um parque de diversões, com professores Pardal e Doutores Emmett Brown do Regresso ao Futuro.
Vou por razões emocionais.
Estive na génese do ecossistema empreendedor que tornou possível isto, assisti de perto ao movimento da vinda da conferência para Lisboa. A primeira edição cá foi dos momentos mais alegres e intensos que vivi. Depois disso mais nenhuma foi igual, porque a vida é mesmo assim. Mas nem por isso têm sido piores, apenas diferentes; a novidade foi dando lugar ao aperfeiçoamento e com isso perde-se aquele brilho nos olhos de quando estamos a começar algo de novo.
Perdoem-me por todos os nomes que estou a omitir, este texto não é de agradecimentos nem tão pouco um relato jornalístico imparcial. Apenas quero referir num ângulo muito pessoal o João Vasconcelos, porque não há edição que não o recorde. Nunca vou esquecer, na primeira noite do primeiro dia da primeira edição, o abraço do João e as suas palavras: “Já viste, estão cá todos, vieram todos a Lisboa! Aqueles nomes todos que lemos no Tech Crunch estão cá!”. Em apenas 4 ou 5 anos de ecossistema empreendedor (começámos muito mais tarde do que Silicon Valley, Londres, Berlin e quase todos os hubs, vá), Lisboa era sede de um dos maiores eventos de tecnologia do mundo. Fui aos Estados Unidos no final de 2015 e muito se falava nisso.
Este ano, em particular, pensei tanto no que ele teria dito ou feito a par de toda a polémica…
Para o João que dizia sempre “Em Portugal temos igual e melhor”, e que só nos faltava era ter cá as pessoas e a escala, porque de resto temos o talento, organização e qualidade, a Web Summit foi uma grande conquista para o país. E foi mesmo. Já desisti de entrar em discussões com amigos e desconhecidos que pedem um desenho, ou que evocam o demónio do ultra-liberalismo em cada esquina. O impacto que a conferência tem tido no país é extremamente positivo. Não falo das receitas dos hóteis e da restauração, isso são amendoins. Falo do reconhecimento internacional que trouxe, do investimento e leads que tem captado e da influência na mudança de mentalidade de uma geração que vê o país a jogar na mesma liga dos que vão a jogo, e que quer ir a jogo cada vez mais. Há cada vez mais startups, mais incubadoras, mais aceleradoras, mais investidores, mais empreendedores que são investidores, e sim, mais unicórnios; Itália (potência G7) tem um unicórnio, nós temos seis. É comparar. Com todos os seus problemas internos para resolver, num mundo caótico, Portugal já não é o canto da Europa, é a entrada, e dessa forma, estamos a ganhar mais ferramentas para resistir.
Subestimar o crescimento da marca Portugal, e Lisboa em particular, no grau de resiliência da população é colocar em risco uma jornada que temos de continuar a fazer, porque todos sabemos que não podemos parar agora. Todos os países estão a atravessar uma grave crise, Portugal é um elo mais fraco do que muitos deles, e o eixo da economia digital e tecnológica é um dos que não podemos deixar cair. Até porque estamos com muitos desafios e muitas arestas agrestes para limar.
A Web Summit é o resultado de quando Portugal funciona bem e de quando vontades políticas opostas convergem no que é importante. Aconteceu assim com a Expo 98, aconteceu assim com a Web Summit. Agradeço a todos os envolvidos, da direita à esquerda que o permitiram e continuam a permitir.
Quem boicotou o evento poderia antes ter optado por vir e fazer os seus statements em palco, como o Jolyon Rubinstein, ator e produtor inglês vencedor de um BAFTA, que elogiou a Web Summit ao mesmo tempo que condenou a organização por aceitar a presença da multinacional petrolífera Shell - ver vídeo. Concorde-se ou não, adorei ver o momento, porque me fez acreditar que a Web Summit ainda pode ser um espaço de liberdade e de encontro sobre o futuro.