50 coisas que aprendi nos meus 50 anos de carreira #03
Saber exatamente o que se vai fazer no caso de ganhar a lotaria ou outro grande prémio. Parece tonto? Não é.
Há uns anos, a minha psicoterapeuta perguntou-me se eu sabia o que iria fazer caso ganhasse a lotaria. Eu achei graça à pergunta, e um pouco surpreendente. É certo que as questões de dinheiro eram uma parte das minhas aflições, digamos assim, e a psicoterapia foi vital para ultrapassar, também, o trauma de um negócio falido; ainda assim achei cómica a questão.
Eu quase não jogo, por isso não, nunca tinha até então pensado no que faria caso ganhasse um grande prémio; para mim era como estar a fazer contas ao dinheiro dos outros.
É muito importante escrevermos o que vamos fazer caso recebamos de repente uma quantia avultada de dinheiro, continuou ela de forma muito séria. Mas isso muito dificilmente vai acontecer, disse, e perguntei-lhe se era uma cena do livro O Segredo. Nada disso. A minha psicóloga, além de ser a melhor psicóloga do mundo, é também a pessoa mais pragmática que conheci e se tem um pingo de esoterismo ou “new age” na suas veias, reserva-o para a sua vida privada.
Foi então que me apresentou a história de uma pessoa que havia ganho 700 e tal mil euros num jackpot e tinha perdido tudo em dois anos, tendo ficado pior do que estava anteriormente, inclusive com os bens penhorados. Aliás, eu testemunhei, por acaso (?), o dia em que chegaram para confiscar um dos seus bens, pois cruzava-me amiúde com essa pessoa (que não era paciente, atenção) nas idas ao consultório. Aquela cena terrível e a história por trás perseguiram-me durante alguns dias. Em suma, a pessoa ganhou o dinheiro, ficou deslumbrada, não traçou um plano, confiou na família errada, perdeu tudo e endividou-se. Mais de 700 mil euros na vida de uma pessoa com filhos criados e sem dívidas nem problemas de saúde dão para muita coisa, pensei, como era possível?!
Não é um assunto sobre o qual haja dados estatísticos, que eu saiba, mas casos destes parecem ser mais frequentes do que imaginamos. O dinheiro, seja a falta ou a abundância, já se sabe, é um dos maiores fatores de desestruturação de uma pessoa e das suas relações, qualquer que seja a sua natureza, pondo a nu todas as fragilidades.
Em Portugal, em particular, temos um problema grave de falta de literacia financeira - veja-se a bolha imobliária que está prestes a rebentar e o elevado número, em comparação com o resto da Europa, de taxas variáveis no crédito à habitação. (Recomendo a este propósito a leitura do artigo Portugal Will Be the First European Housing Bubble To Burst in 2023.
Nós os portugueses não gostamos muito de falar de dinheiro, não se ensina nas escolas, tem-se vergonha em família e com os amigos, e nas empresas e no mercado laboral em geral é quase tabu; pergunte-se a uma empresa o budget que tem para o projeto x ou para a vaga de emprego y, e é quase o quarto segredo de Fátima, tão pouco está a maioria dos trabalhadores à vontade para dizer o que merece ganhar. É um trauma nacional, o dinheiro.
O que eu aprendi com a minha querida psi foi: saber o que se vai fazer com o dinheiro que viermos a ganhar, seja num prémio mirabolante, seja fruto do nosso trabalho e sucesso, é saber o que queremos da vida. É ter um plano. O dinheiro aos magotes provavelmente não virá, pelo menos não na forma de um jackpot milionário incrível, mas sabermos para onde queremos ir é uma grande forma de empoderamento e de pleno uso do livre arbítrio.
Essa visão não me resolveu a conta bancária, nem tão pouco tem a ver com controlar o impossível, antes dominar a forma como reagimos às situações e estamos preparados para assumir o comando não culpabilizando os outros ou situações externas pelas nossas escolhas.
Eu comecei a escrever num caderno, e tenho vindo a afinar ao longo do tempo, inclusive formulei várias situações para diferentes quantias de dinheiro.
No fundo, aquilo a que damos resposta no momento em que começamos a pensar no assunto à séria é: o que faríamos (faremos) e o que seríamos (seremos) se não tivessemos qualquer problema de dinheiro. Já pensaram no que isso pode representar de clarividência para a nossa vida?
Sabermos o que queremos é a coisa mais difícil da vida, por isso, este é um ótimo exercício. É como ter um mapa para, mesmo que tomemos atalhos e desvios, não largarmos de vista a nossa melhor versão. E também para, quando um dia o dinheiro vier, não nos perdermos nem sermos apanhados na falsa ideia de que ele tudo resolve.
Uma nota final: nada tem de ser escrito na pedra. É normal ao longo do tempo irmos mudando de prioridades. É saudável. Importante é não deixar de refletir e assumir o nosso poder, inclusive o poder de mudar.